HÁ 70 ANOS: UM EVANGELHO SEGUNDO O TERCEIRO REICH
Quando o Partido Nacional-Socialista da Alemanha «ocupou» pelo voto em Adolfo Hitler o poder em 1933, no penúltimo dia de Janeiro, poucos mêses mais tarde já queria ocupar também o Céu.
A ideologia dos nazis lançaria um braço religioso, numa religião totalitária de Estado, desejando apropriar-se também de Jesus Cristo como mais um dos seus apoiantes, não obstante algumas das igrejas evangélicas no Terceiro Reich terem mantido uma atitude de oposição.
Como a propaganda anti-religiosa e neo-pagã do NSDP iria fazer um apelo a uma mistura de reacções premonitórias contra o regime ora instalado, por parte de católicos e protestantes, é facilmente explicável pela História. Não obstante Hitler ter pronunciado em 23 de Março daquele ano, o que em linhas gerais e no seu tom espalhafatoso de discurso demagógico seria uma «promessa»: «Os direitos das igrejas não serão atingidos», a verdade é que cinco mêses depois declararia «que a unidade dos alemães deve ser garantida por uma nova concepção do mundo, pois o cristianismo, sob a forma actual, não está à altura das exigências.»
Havia já para bom entendedor uma depreciação do cristianismo enquanto doutrina de Cristo, uma desvalorização de quem se achava predestinado e a incorporar, politica e socialmente, a filosofia do Super-Homem de Nietzche.
Mas que apesar disso muitos cristãos alemães -o conselho superior da Igreja Evangélica, luteranos e reformados - tivessem optado por uma colaboração quase estreita com o Movimento hitleriano para criar um Cristo à imagem e semelhança das ideias do regime, já não se explica tão facilmente.
No entanto, isso aconteceu e até respaldado por um sínodo. Com efeito, realizado na Saxónia em 1933, o Sínodo de Braune comprometer-se-ia a criar um «novo Cristo» que alegadamente iria fornecer um conteúdo teológico numa nova comunidade: não a Igreja, mas o povo alemão. A igreja evangélica alemã adaptar-se-ia ao ideário nacional socialista e procuraria, a partir daquele sínodo, justificar o regime emergente através do Movimento dos Cristãos Alemães (os Deutsche Christen ). Estes iriam combater o marxismo, o comunismo e... o judaismo, para agradar a Hitler e aos filósofos nazis como Rosemberg, Streicher e outros, inclusivamente pensavam criar a Igreja do Reich nacional socialista. E exprimiram até a «alegria da igreja alemã em participar da formação de uma nação e do renascimento do sentimento patriótico.» Tal atitude ia em sentido plenamente inverso ao que o apóstolo Paulo escrevera aos crentes filipenses, acerca da sua cidadania «pois a nossa pátria ( no grego politeuma ) está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.»( Filip 3,20)
É óbvio que vozes valentes se ergueriam. Karl Barth, eminente teólogo protestante ao escrever um ensaio corajoso contra os desígnios dos Cristãos Alemães e do seu apoio ao nazismo, em 1933, afirmaria em um manifesto, no qual usaria contra argumentando o próprio desejo desse Movimento : «Para os Cristãos Alemães, a grandeza do Estado nacional-socialista, não é apenas uma questão de civismo ou de convicção política, mas um objecto de fé. (...) O Evangelho não deve ser anunciado no futuro senão segundo o Evangelho do Terceiro Reich.» O autor do exaustivo e célebre comentário Carta aos Romanos iria mais longe no desmascaramento dos Cristãos Alemães, acusando-os, sem receio de represálias hitlerianas, de quererem fundar uma «nova igreja, a igreja dos cristãos alemães, ou seja, dos cristãos de raça ariana.»
Vinte anos depois, em 1957, duas décadas em que o mundo ocidental se abismou na quase incredulidade dos actos horrorosos conhecidos em pormenor pelo regime nazi, outras conceituadas vozes do próprio catolicismo romano se ergueriam apoiando as posições tomadas, com valentia, pelo conceituado teólogo protestante.
Uma delas foi a do téologo católico Hans Kung que explicou por que razão escreveu a sua tese doutoral sobre um teólogo evangélico, Barth: «Nenhum teólogo protestante de este século conta com uma autoridade maior para a sua luta contra o nazismo, do que Karl Barth ».
Mas foi preciso que uma vaga de milhões de mortos se erguesse como um memorial pesadíssimo na memória dos homens, que nem evangélicos nem católico-romanos na Alemanha hitleriana lograram infelizmente evitar, para se perceber como um qualquer ditador pode envolver dignitários religiosos numa teia de subserviência, secular, ao Estado. «Cristo e Hitler» parecia ser para os tais Cristãos Alemães uma socidade que iria complementar a caminhada vitoriosa do cristianismo numa nova era, que tinha veleidades milenaristas, que pregava a antecipação do Milénio, porquanto se dizia que o Terceiro Reich duraria mil anos.
Os Deutsche Christen tocaram até o limite do abismo ao classificarem a sua acção como movimento defensor do Partido Nazi, fazendo uma aliança entre «a cruz suástica e a cruz cristã» - como se podia ler nos seus panfletos -, auto-denominando-se «os SA de Jesus Cristo na luta pela destruição dos males físicos, sociais e espirituais ». Ora quase toda a gente, com mais de 50 anos de idade pelo menos, sabe o que representava a sigla SA, ou divisão de assalto, uma organização paramilitar que, intimidando pelo terror nas ruas, foi nos finais da década de 20 e no início dos anos 30 ajudando a construir o tenebroso reino do nazismo e do regime de Hitler.
Dizia-se então que a igreja evangélica alemã estava a procurar uma identidade. Durante anos existira à sombra da monarquia, depois da chamada República de Weimar, mais tarde com Hitler as suas relações com o Estado pareciam ir no caminho de, finalmente, virem a ser um estado dentro do próprio Estado. Uma parte mais francamente utópica e, de certo maneira, utilitarista, da igreja evangélica alemã achou no espelho das suas atitudes teológicas e no seu anti-semitismo endémico ter enfim um rosto identitário, talvez com a grandiosidade wagneriana, resolveu seguir o canto da sereia, e, ao formar o Movimento dos Cristãos Alemães, já proclamava esta enormidade. Sem comentários: «Um poderoso movimento nacional dominou e levantou nosso curso no seio da nação alemã despertada do seu sono. Dizemos um «sim» agradecido a essa reviravolta da história. Foi Deus que no-la deu.(…) Ligados à Palavra de Deus, reconhecemos nesse grande evento de nosso tempo uma nova ordem do Senhor à sua Igreja.»
E não foram apenas os alinhados Cristãos Alemães que ungiram as políticas do Estado hitleriano, mas também outras organizações religiosas se meteram na boca do lobo.
Com efeito, a história não emudece no que concerne a organizações religiosas como as Testemunhas de Jeová da Alemanha ( que então se apelidavam como Estudantes da Bíblia alemães ) e ao seu envolvimento com o regime nazi, a partir da sede da Organização da Watchtower (Torre de Vigia), em Magdeburg, em 1933. Como se costuma dizer, existe um «esqueleto» no armário das Testemunhas de Jeová do período negro da Alemanha, cujo fantasma se traduz em afirmações curiosas contidas numa Declaration of Facts que não terá impressionado Hitler e que asseverava, pela pena de Rutherford, um apoio explícito ao «governo actual da Alemanha», no que dizia respeito à necessidade de um ataque aos «homens de negócios judeus» e à «influência religiosa errada» ( protestantismo, catolicismo, judaísmo?), afirmando que «longe de estarmos contra os princípios advogados pelo governo da Alemanha, nós apoiamos sinceramente esses princípios e sublinhamos que Jeová Deus através de Jesus Cristo(?) causará a realização completa desses princípios». Os tais «princípios», parece-nos, que seriam uma coisa e o seu contrário, a aproximação ao governo de Hitler que se aproximava do Reino de Deus por Mil Anos.
Em todo o caso, há quem considere que os anseios mercantilistas das Testemunhas de Jeová, iam mais no sentido de que Hitler não proibisse a venda dos livros da Sociedade da Torre de Vigia na Alemanha dessa década, do que na crença cega no nazismo.
No entanto, para alcançarem esse desiderato, os Estudantes da Bíblia não hesitaram em misturar a sua doutrina com a doutrina nacional-socialista, expondo que estavam «lutando pelos mesmos objectivos e ideais elevados e éticos que o Reich alemão nacional proclamou a respeito do relacionamento do Homem com Deus», chegando a afirmar não existirem pontos de vista conflituantes, mas, sim, uma harmonia completa com o regime nazi.
Face, finalmente, à paganização e secularização das Igrejas – não incluindo aqui organizações como as Testemunhas de Jeová -, na Alemanha de Hitler, mais uma vez as vozes dos teólogos fiéis à doutrina cristã, de novo Barth acompanhado de Bonhoeffer ( que morreria num campo de concentração), se erguem com uma Declaração Teológica. A urgência de reagir contra o monstro religioso pseudo-evangélico que se estava a criar levou a que muitos evangélicos, congregações evangélicas e cristãos da Alemanha, fiéis à Palavra de Deus, se reunissem na cidade de Barmen, em 1934, proclamando e apelando a um conjunto vasto de premissas, cuja pedra de toque era esta: «Jesus Cristo, como nos é atestado na Sagrada Escritura, é a única Palavra de Deus que devemos ouvir, e em quem devemos confiar e a quem devemos obedecer na vida e na morte.» A esta intrépida posição, contextualizada com o estado de terror nazi que queria fazer da Igreja protestante um instrumento seu, a História chamou-lhe a Igreja Confessante.
Não obstante para os seus membros a porta terrena mais próxima poder ser a de Auschwitz.
João Tomaz Parreira
Bibliografia:
Karl Barth, A Existência Teológica Hoje
Colette Brooks Dormindo com o Inimigo-O Estilo da Watchtower
M.J.Penton, Uma História da Tentativa de Comnpromisso
Anuário das Testemunhas de Jeová de 1934
Daniel Cornu, Téologo da Liberdade, RJ, 1971
Hans Kung, Libertad Conquistada
Enzo Colloti, A Alemanha Nazi
Declaração Teológica de Barmen, 1934
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3. Mas temo que, como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim se corrompam os vossos pensamentos e se apartem da sinceridade para com Cristo. 4. Porque quando aparece alguém pregando-vos outro Jesus, diferente daquele que vos temos pregado, ou se trata de receber outro espírito, diferente do que haveis recebido, ou outro evangelho, diverso do que haveis abraçado, de boa mente o aceitais. 5. Mas penso que em nada tenho sido inferior a esses eminentes apóstolos! (2Cor 11,3-5)